Tarcísio declara como despesa de educação R$ 24 bi pagos a aposentados
São Paulo — O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem declarado gastos com aposentadorias como se fossem despesas ligadas à manutenção e ao desenvolvimento do ensino no estado. A prática, que também foi repetida por gestões anteriores, se apoia em uma lei que é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), e tem computado bilhões de reais do sistema previdenciário dentro da alçada da educação.
Um levantamento feito pelo Metrópoles com base nos dados da Secretaria da Fazenda mostra que desde o início do mandato de Tarcísio, em janeiro de 2023, até agosto deste ano, mais de R$ 24 bilhões do pagamento de inativos foram registrados pelo governo como recursos da educação, ao lado de despesas comuns à área como a reforma de escolas e o pagamento de professores da ativa.
Em 2023, a inclusão dos gastos com aposentados na conta da educação permitiu que o governo apontasse como cumprida a meta constitucional no estado de aplicar pelo menos 30% da receita arrecadada com despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino. A gestão afirmou ter, inclusive, ultrapassado o mínimo constitucional, com investimentos de mais de R$ 62,7 bilhões na área.
As linhas do orçamento mostram, no entanto, que R$ 14,4 bilhões foram utilizados só para bancar as despesas com servidores inativos. Com o valor dos aposentados excluído da conta, o governo teria despendido R$ 48,2 bilhões com manutenção e desenvolvimento do ensino, ou 25,9% da receita arrecadada naquele ano — um pouco acima do mínimo definido pela Constituição Federal (25%).
Para chegar aos 30% exigidos pela Constituição Estadual, o governo teria que aplicar mais R$ 7,6 bilhões em ações destinadas ao dia-a-dia da educação pública do estado.
Em 2024, a prática de incluir os aposentados na conta voltou a se repetir. Até agosto, o governo computou mais de R$ 9,7 bilhões dos inativos como se fossem da educação.
O Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2025 também prevê a continuidade da manobra, com estimativa de gastos de R$ 14,5 bilhões com o financiamento de aposentadorias. O valor com desvio de função seria suficiente para custear durante todo o ano as três universidades estaduais paulistas — USP, Unicamp e Unesp —, caso fosse destinado à manutenção e desenvolvimento do ensino.
Prática questionada no STF
Como já mostrou o Metrópoles, o uso de recursos da educação para custear a previdência não é novidade no estado.
Desde 2018, as gestões que governaram São Paulo se apoiam em uma lei estadual, aprovada pelo então governador Márcio França (PSB), para justificar a manobra dos recursos.
A lei que autoriza o governo a aplicar parte do orçamento da área com “despesas necessárias ao equilíbrio atuarial e financeiro do sistema previdenciário” é, no entanto, alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF.
Em 2020, a Procuradoria-Geral da República (PGR) acionou o Supremo para questionar a validade da lei paulista. Na ação, o procurador Augusto Aras afirmou que a prática fere a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que rege o tema a nível federal, e “compromete o orçamento da educação, acarretando substancial prejuízo para a concretização do direito fundamental”.
A lei federal indica que a verba destinada à manutenção e desenvolvimento de ensino deve ser utilizada para gastos como o salário de professores, a compra de material didático e a manutenção de equipamentos.
“A LDB não incluiu, nas despesas para a manutenção e desenvolvimento do ensino, os encargos com inativos e pensionistas da área da educação”, afirmou Aras na ação, ressaltando que a legislação veta o uso da verba para trabalhadores da educação em atividade alheia à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, onde se encaixam os aposentados, segundo ele.
Relatora da ADI, a ministra Cármen Lúcia já declarou seu voto contrário à manobra, mas o julgamento do caso ainda não foi finalizado. Em nota ao Metrópoles, a assessoria do STF afirmou que não há prazo para que a ação seja julgada.
Em 2020, o Supremo já havia declarado inconstitucional outra lei paulista, de 2007, que também permitia utilizar a verba da educação para o pagamento do déficit previdenciário.
Pesquisador da área de financiamento em política educacional, Rubens Barbosa afirma que não há dúvidas sobre a inconstitucionalidade da prática.
“Não pode ser considerada como manutenção e desenvolvimento de ensino, conceitualmente, porque o pessoal aposentado não está nem mantendo e nem desenvolvendo ensino. Já fez isso antes, quando contribuiu, quando estava lá como um docente, ou como funcionário. Depois que se aposentou, não”.
“Ao colocar essa condição [dos aposentados] dentro desse bolo [da verba destinada à manutenção e desenvolvimento do ensino], você diminui a verba para os gastos necessários com o pessoal da ativa, manutenção das escolas, expansão do sistema e assim por diante”, explica.
Rubens diz que o não cumprimento do repasse de 30% estipulado na Constituição Estadual para a educação é um dos fatores que ajudam a explicar os problemas atuais da rede de ensino paulista.
PEC do Manejo
O governo Tarcísio enviou para a Assembleia Legislativa (Alesp) uma proposta de emenda à constituição (PEC) que prevê reduzir de 30% para 25% o percentual mínimo de gastos obrigatórios com educação. A chamada PEC do Manejo prevê que a diferença percentual possa ter seu uso flexibilizado, sendo utilizada tanto pela educação quanto pela saúde.
Em audiência pública que discutiu o tema, a procuradora Élida Graziane Pinto, do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, lembrou os desvios para o pagamento de inativos e disse que o governo tenta esconder o problema atual com a PEC.
“A forma como o estado apresenta a PEC para trafegar indistintamente a verba da educação para a saúde é, na verdade, uma cortina de fumaça para ocultar o cômputo de inativos no dinheiro da educação.”
A procuradora afirmou que “não há dinheiro sobrando na educação” e criticou a situação atual da rede.
“O problema do estado de São Paulo não é que tem dinheiro sobrando na educação. A gente não tem. O problema que temos são as mais de 5 mil escolas sucateadas. Que os meninos saem do 3º ano do ensino médio muitas vezes com o conhecimento em matemática equivalente ao do 7º ano do ensino fundamental, e do 8º e 9º anos em português”, disse Élida.
No mesmo dia da audiência, a PEC foi aprovada em primeiro turno pelos deputados estaduais. Durante a sessão da votação, o deputado Antônio Donato (PT) exibiu uma apresentação sobre o desvio das verbas para a previdência e afirmou que o governo vai diminuir o percentual mínimo da educação para, na verdade, seguir pagando aposentados com a verba.
“O recurso continuará sendo utilizado para pagamento de inativos, está comprometido com esse tipo de despesa. Não irá para a saúde”, dizia a apresentação.
Para o professor Rubens, a PEC representa a “derrocada” da educação. “É a derrocada geral. A perspectiva de destruição mais próxima e mais profunda que já foi feita na educação de São Paulo”.
Outro lado
O Metrópoles questionou o governo de São Paulo sobre o uso da verba da educação para pagar aposentados. Em nota, a gestão Tarcísio disse que “cumpre rigorosamente o mínimo de 30% previstos na Constituição Estadual para aplicação na área de Educação”.
“Em 2023 o Estado aplicou 33,66% em Educação, sendo 25,90% em sentido estrito, desconsiderada qualquer despesa de natureza previdenciária, superando o mínimo federal. O mesmo irá ocorrer no exercício de 2024”, afirmou o governo.
Questionada se havia enviado a PEC para a Alesp por uma aparente dificuldade de cumprir o mínimo constitucional estadual, a gestão negou e disse que a proposta “está justificada na flexibilidade de alocação do limite adicional de 5%, hoje limitado à Educação, e que poderá ser compartilhado com a Saúde”.
“O regramento apenas prevê que nos anos em que a arrecadação estadual tiver incremento expressivo, o Executivo possa decidir remanejar até 5% da receita paulista para a Saúde, adequando o repasse obrigatório da Educação aos 25% estabelecidos pela Constituição Federal”, afirma a nota, que diz ainda que a flexibilidade se pauta por “critérios demográficos” e a necessidade de ampliar recursos na área da saúde.
O governo não respondeu se, caso a PEC seja aprovada, continuará computando gastos de aposentados na futura verba “flexível” da educação e da saúde.