De que se faz um país? (por Marcos Magalhães)
Na tarde fria e chuvosa de sábado, em Brasília, centenas de pessoas guardavam lugar na fila ao redor de uma sala de teatro no centro da cidade. Muitas passaram mais de cinco horas à espera de um ingresso gratuito para ouvir histórias de pessoas comuns espalhadas pelo país.
São casos de amor e de violência, de preconceito e de superação, histórias de vida que desfilam na peça Eu de Você, em que a atriz Denise Fraga divide o palco apenas com quatro instrumentistas e um mosaico de imagens de brasileiras e brasileiros no imenso telão.
Humor, poesia e música compõem o ambiente de um encontro da plateia com muitas faces do Brasil, presentes nas imagens e nos textos que deram origem à peça. Alguns lidos em voz alta por espectadores convidados ao palco.
O espetáculo, que voltou a rodar o país após a pandemia, chegou à capital federal um ano depois do ataque às sedes dos três Poderes por radicais enfurecidos, a apenas quatro quilômetros da Caixa Cultural, lotada naquela noite chuvosa.
Ao final, diante de pouco mais de quatrocentas pessoas emocionadas, a atriz solitária emitiu a sua receita para deixar no passado o flerte com o autoritarismo. “Um país”, disse Denise Fraga, “se faz com arte e cultura, ciência e educação”.
Outras receitas estarão nas bocas de muita gente, especialmente naquelas envolvidas mais de perto com as eleições de outubro. Algumas mais oportunistas, outras mais conectadas com reais desejos de mudança.
A mágica das quatro palavrinhas ditas no palco, porém, é que elas são intensamente políticas sem o serem. Elas falam de gente, a mesma matéria prima da peça que tem levado a várias partes do país enredos de vidas comuns, sem traço de semelhança com o que os políticos se acostumaram a chamar de narrativas.
Arte e cultura foram quase asfixiadas nos quatro anos do governo anterior. A ciência foi tratada a pedradas quando alertava para a urgência de máscaras e vacinas durante a pandemia. E a educação acabou submetida a caprichos ultraconservadores de uma cruzada ideológica.
Pois as quatro palavrinhas, tão bem recebidas naquele auditório, compõem talvez o mais abreviado e eloquente manifesto contra o autoritarismo. Tão necessário no momento em que expoentes da direita radical vêm como livre expressão os ataques às instituições democráticas.
Essas mesmas instituições estão sob ataque em diversas partes do mundo. Elas estão na mira especialmente dos populistas de direita, que se multiplicam junto a eleitores assustados pelos riscos de um mundo em crise.
Até a democracia mais poderosa do mundo está sob ataque neste ano em que vão às urnas eleitores de países onde vive mais da metade da população do planeta. A possibilidade do segundo mandato de um belicoso Donald Trump tem acendido luzes amarelas no Ocidente.
Ninguém esquece das imagens do assalto ao Capitólio, em Washington, há três anos. Imagens que, de alguma forma, inspiraram o vandalismo que tomou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 2023. Trump, com seus olhos de poucos amigos, continua a ser uma espécie de ídolo dos radicais de direita também na América do Sul.
Em um momento tão delicado para os valores que há tanto tempo estão relacionados ao próprio conceito da democracia ocidental, vale repetir – especialmente neste ano eleitoral – a velha pergunta: de que se faz um país?
O momento é rico para se relançar o debate. Até para que não se repitam tão vazias as discussões dos meses que antecedem eleições.
Em 2024, no Brasil, ainda serão escolhidos apenas vereadores e prefeitos. Mas a sua escolha já começará a desenhar o perfil das prioridades que estará mais uma vez – e de maneira intensa – em debate nos meses anteriores às eleições gerais de 2026.
As histórias colhidas pelos autores da peça que emocionou os espectadores de Brasília e as notícias divulgadas dia após dia pelos meios de comunicação mostram um país em transformação e com múltiplas e diversas caras.
Aos mais sedentos políticos em busca de votos talvez baste o estímulo a uma grande e vazia guerra ideológica, que reforce estereótipos e camufle intenções mesquinhas.
Mas sempre é tempo de trazer à mesa os valores que nos inspiram e as ações que podem transformar as vidas das pessoas. Até para trazer mais oxigênio a um debate que se esquive das armadilhas montadas pelas máquinas de propaganda.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.