Entre desinformação e polêmica, DF teve 123 abortos legais em 2023
O Distrito Federal registrou recorde de abortos legais em 2023, quando houve o maior número da série histórica, com 123 procedimentos. O dado representa um aumento de 310% em comparação com o ano de 2021, crescimento esse que segue uma tendência nacional e vem acompanhado de polêmicas envolvendo desinformação, projetos de lei e debates intensos.
Atualmente, a legislação brasileira estabelece três casos em que há excludente de ilicitude para casos de aborto. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a gestante tem liberdade para interromper a gravidez caso seja constatada anencefalia do feto, condição em que o bebê tem cérebro subdesenvolvido e crânio incompleto. As outras duas previsões estão no Código Penal, no artigo 128, incisos I e II, que dizem que o procedimento pode ser feito quando a gravidez representa risco para a vida da mulher e em casos de estupro/violência sexual.
O Metrópoles obteve os dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde. Entre janeiro e novembro de 2023, quando os últimos números foram consolidados, ocorreram 123 interrupções de gravidez no DF, o mais alto indicativo da série histórica, desde 2007. Em todo o ano de 2022, foram 99 abortos legais.
Uma da hipóteses em que há previsão na lei para esse procedimento é em caso de gravidez fruto de estupro. Cabe ressaltar que os números desses crimes também vêm crescendo no DF. Foram registrados pela Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP) 885 estupros em todo o ano de 2023 na capital do país, um aumento de 41,8% em comparação com o ano de 2015, por exemplo.
Casos
Em 2023, 2.555 abortos legais foram realizados no país. Em São Paulo, 646 mulheres solicitaram o procedimento e, no Rio de Janeiro, 313. Os números são absolutos e não refletem a proporção populacional de cada unidade federativa. Veja os dados de aborto no país.
Quando Rebeca Mendes, 36 anos, descobriu a gravidez, ela ficou desesperada. Em 2017, estava em processo de separação e em uma longa jornada para conseguir colocar o DIU pela rede pública. Ela já tinha dois filhos e fazia faculdade pelo ProUni.
Ela não se encaixava em nenhum dos casos previstos em lei que autorizam uma mulher a fazer o aborto legal, mesmo assim entrou com um processo no Supremo Tribunal Federal para conseguir uma liminar permitindo interromper a gravidez, que foi negada pela juíza Rosa Webber.
O caso de Rebeca teve repercussão no país e destaque internacional. A ONG Consorcio Latinoamericano contra el aborto inseguro (Clacai) providenciou uma viagem de para que Rebeca fosse à Colômbia. Em Bogotá, Rebeca conseguiu realizar o procedimento ainda com nove semanas. Ela era estudante de direito à época e, atualmente, formada, ajuda mulheres a conseguir o acesso à cirurgia, com orientação para o aborto legal no país e auxiliando pessoas possam viajar para o exterior.
Dos países que conquistaram a legalização do aborto na América do Sul, apenas a Argentina e a Colômbia permitem o aborto para mulheres que não sejam residentes do país. No Uruguai, é autorizado para mulheres que vivem há pelo menos dois anos no país.
“Isso mostra também como quem tem acesso vai conseguir fazer o procedimento”, destacou Rebeca. “Mulheres com dinheiro conseguem viajar para outro país, já mulheres sem nenhum recurso vão tentar de qualquer jeito”, completou.
Rebeca foi apoiada no Brasil pela ONG Anis – Instituto de Bioética. Com outras histórias, a instituição reuniu relatos de mulheres que passaram pelo procedimento em documentário. “Ninguém faz isso porque quer”, disse Glória, aos 78 anos. Ela contou da experiência que teve aos 38 anos, quando fez o aborto. Veja essa e outras histórias no documentário “Eu vou contar”.
Enfrentamento jurídico
No debate histórico sobre o tema aborto, deputados têm recorrido a mudanças em legislações locais para combater as previsões legais dos procedimentos, já estabelecidas a nível federal. Projetos de lei que colocam barreiras, como obrigar a mãe a ouvir batimentos cardíacos ou ver imagens do feto, surgiram em diferentes unidades da Federação e municípios.
Em Maceió (AL), por exemplo, a Câmara de Vereadores aprovou a Lei Municipal nº 7.492, de 19 de dezembro de 2023, que obriga os médicos a mostrarem para a gestante, antes do aborto, “de forma detalhada e didática”, o desenvolvimento do feto semana a semana. O texto ainda determina que a mulher veja vídeos e imagens com os métodos cirúrgicos utilizados para executar o procedimento abortivo.
O Tribunal de Justiça de Alagoas, no entanto, determinou a suspensão imediata da lei em 18 de janeiro. O desembargador Fábio Ferrario criticou a legislação, avaliando que a mulher precisa ser tratada como um “sujeito de direitos, e não como objeto de interesses políticos ou ideológicos”.
Em ONGs, mulheres tem se apoiado para realizar procedimento
“É terminantemente ilegítimo que a escolha seja feita previamente pelo ente público, obrigando-se a ver imagens que só farão aumentar o sofrimento vivenciado pela mulher, que, repise-se, já se encontra em uma situação de total vulnerabilidade pela fatalidade a que foi acometida”, traz a decisão da Justiça alagoana.
Já em Goiás, uma legislação estadual semelhante segue em vigor desde 11 de janeiro. Na data, o governo sancionou a Lei nº 22.537/2024, que busca a “conscientização contra o aborto” obrigando a grávida a receber exame contendo os batimentos do feto. O texto, de autoria do ex-deputado estadual Fred Rodrigues (DC), hoje cassado, é alvo de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF).
A Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) recorreu ao STF para pedir a inconstitucionalidade da lei, ressaltando a “violação a diversos dispositivos constitucionais, em especial os princípios da dignidade da pessoa humana”. A ADI afirma que o texto aprovado em Goiás é uma “tentativa enviesada de causar sofrimento, angústia e/ou constrangimento à mulher e tentar convencê-la a não realizar o aborto”, e traz uma série de dispositivos legais que a lei fere.
No Distrito Federal, dois projetos de lei apresentados na Câmara Legislativa no retorno aos trabalhos, neste mês de fevereiro, são cópias do texto aprovado em Goiás, com pequenas mudanças. As proposições, dos deputados distritais Thiago Manzoni (PL) e João Cardoso (Avante), também querem que os hospitais do DF forneçam “o exame de ultrassom contendo os batimentos cardíacos do nascituro para a mãe”.
“Extremamente danoso”
Para a presidente da Associação das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) de Goiás, Sônia Caetano Fernandes, leis e projetos como esses têm dois problemas principais: Primeiro, no âmbito do direito, já que são inconstitucionais. Segundo, na questão humana.
“Quando a mulher decide pelo aborto legal, ela já esta em extrema vulnerabilidade, porque foi vítima de uma fatalidade. O Estado deve se limitar a providenciar o acolhimento humanizado para ela. Submeter essa pessoa a uma ‘campanha’ para tentar convencer a não abortar é extremamente danoso ao ponto de vista psicoemocional da mulher”, afirma Sônia Caetano, que também é advogada.
Ela ainda lembra da competência dos textos municipais e estaduais. “Nós já temos uma lei de âmbito federal, que é o Código Penal, que prevê as hipoteses de aborto legal. A lei municipal ou estadual não pode restringir os efeitos de uma lei federal. Então, cabe apenas à União legislar a respeito”, sintetiza.
A ABMCJ solicitou que o STF suspenda a eficácia de toda a lei aprovada em Goiás e que ela seja julgada totalmente inconstitucional, ou, caso o Supremo não atenda a essa solicitação, seja declarada a inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, “para que a ‘campanha de conscientização’ seja considerada constitucional apenas se não for pautada em fundamentalismo religioso ou moralismos”.
A ADI pede “estudos sérios que analisem o mundo real da prática do aborto no Brasil e no mundo, pelos rigorosos critérios da medicina baseada em evidências, que atestem as mortes geradas no mundo pela criminalização do aborto, por sua seletividade e efeito discriminatório”, por exemplo.